“Sair do armário é preciso”. É assim que Regina Navarro descreve, em seu livro Novas Formas de Amar, a recente e intensa indignação que muitas pessoas demonstram à monogamia como única forma de se relacionar. E os diversos questionamentos em relação à monogamia têm tomado forma, cada vez mais, em torno de uma expressão: não monogamia.
Como um guarda-chuva que contêm diversas formas de se viver contrárias aos modelos tradicionais, declarar-se não monogâmico quer dizer, fundamentalmente, que você escolheu correr do jeito monogâmico de se relacionar – embora nem sempre saiba como ou para onde direcionar sua corrida.
Mas sabemos o motivo da fuga: a monogamia como se coloca hoje, ancorada no amor romântico, promete que outra pessoa – e unicamente ela – será responsável por satisfazer nossos desejos em todas as áreas. Nada faz sentido longe do “amor verdadeiro” e sua presença é tudo de que precisamos.
E essa promessa, obviamente, mais cedo ou mais tarde, torna-se fonte de desilusões, brigas, frustrações e questionamentos sobre si. Afinal, o que há de errado comigo para que a promessa não tenha dado certo?
Algumas pessoas, no entanto, conseguem superar esse primeiro choque e começam a perceber que, talvez, o problema não esteja em si, mas em um formato de relação responsável por promessas descabidas, nada saudáveis e, ao fim, danosas. Seria, então, a não monogamia uma saída para termos relacionamentos mais saudáveis?
Não monogamia ou não monogamias?
Parece não existir um consenso sobre quais formas de relação estão inseridas na não monogamia, mas esticando ao máximo o conceito conseguimos encontrar a relação aberta, o poliamor, as relações livres e a anarquia relacional como os exemplos mais frequentes.
Como bons seres humanos que somos, não é raro encontrar brigas e discussões acaloradas entre defensores de cada grupo, embora o desejo por driblar a monogamia seja o grande ponto em comum entre todos eles.
Relação aberta
A relação aberta, encarada muitas vezes como um “primeiro passo” na não monogamia, mantém o casal ainda como figura central na relação. Todas as pessoas que se aproximarem serão secundárias e estarão subordinadas à vontade do par central.
Casais que iniciaram monogâmicos e abrem a relação costumam proibir envolvimentos afetivos com outras pessoas: aqui só pode o sexo. Como diriam alguns, tudo certo para dar errado. Em muitos momentos esse controle se torna inútil e um dos dois – ou ambos – acaba se apaixonando e gerando uma profunda crise na relação principal.
Relações abertas podem possuir listas (literalmente) de acordos, que devem ser cumpridas como pacto de fidelidade entre o casal.
Poliamor
Já o poliamor por muito tempo apareceu como sinônimo de não monogamia, na tentativa de tornar mais agradável aos ouvidos monogâmicos o envolvimento emocional entre mais de duas pessoas: “Você ama seu marido ou sua esposa?
Pois bem, da mesma forma, amo essas duas, três, quatro pessoas aqui e isso não significa menos amor”. O esforço de mostrar que todos os amores são possíveis buscava sensibilizar as pessoas para novas experiências afetivas.
O slogan que traz “amor” no nome serviu para popularizar a não monogamia, embora o poliamor não se resuma a isso e possua diversos formatos possíveis.
A principal bandeira poliamorista, na contramão do relacionamento aberto, é o envolvimento emocional profundo, podendo gerar várias famílias ao mesmo tempo, com ou sem filhos.
Morar junto e dividir as contas, as delícias e os perrengues de uma rotina é algo que, no poliamor, pode ser feito por mais de duas pessoas.
Relações livres e anarquia relacional: é tudo igual?
As relações livres (RLi) e a anarquia relacional (AR), por muitas vezes, são quase impossíveis de serem distinguidas. Ambas compartilham muitos princípios, os quais valorizam a autonomia das pessoas e não suportam, de forma alguma, a imposição de regras ou acordos que firam a liberdade alheia.
O questionamento à “escalada relacional” é constante nos dois formatos, o que gera um completo repúdio e desprezo pelas nomenclaturas tradicionais de relação (namoro, noivado, casamento etc).
O sexo, tão badalado pela monogamia, não ocupa papel central aqui – o que consideramos amizade será tão ou mais importante, para um RLi ou um AR, quanto qualquer relação que envolva sexo. Existe um conteúdo político muito forte em ambas.
Eu diria, na tentativa de simplificar o que muitas vezes nem não monogâmicos conseguem explicar, que a anarquia relacional é a relação livre do anarquista.
Não monogamia política
Há ainda a não-monogamia política (NMP), que não é exatamente um jeito de se relacionar, mas uma forma de olhar o mundo. E aqui vai um componente muito valioso que a não monogamia vem incorporando ao seu discurso: o caráter rebelde, transgressor e político, que vai além de perguntar por que não podemos transar com mais de uma pessoa.
Na NMP, o entendimento é de que a monogamia é uma das opressões que existem na nossa sociedade. Na tentativa de criar um mundo mais bacana e igualitário, os que se identificam com a NMP criticam o modelo econômico, a desigualdade de gênero, o racismo, o capacitismo e tudo que se coloca como obstáculo à não monogamia.
Poligamia: mais do mesmo
A poligamia, por sua vez, não é de forma alguma um tipo de relação não monogâmica. Para acabar com qualquer confusão conceitual, é importantíssimo destacar que o contrário de monogamia NÃO É a poligamia.
Ambos os formatos exigem a exclusividade afetiva e sexual das mulheres, perpetuam a ideia de exclusividade conjugal e são expressões do patriarcado.
Tanto a monogamia quanto a poligamia mantêm intacta a hierarquia entre as relações, que é a condição fundamental para a existência da monogamia, segundo Brigitte Vassallo em seu livro O Desafio Poliamoroso, recentemente traduzido para o Brasil por Mar Bastos (@marifeminismo).
Essa hierarquia é tão presente e normalizada nas nossas relações, que nem nos damos conta dela. O sexo aparece como o elemento mais importante de demarcação de importância das pessoas na nossa vida.
Assim, namorados, noivos e maridos sempre estarão à frente das amizades, por exemplo. Relações sexuais ou que decorram do sexo possuem prioridade na lei, na concessão de direitos e benefícios.
Tudo é feito para que a monogamia pareça natural, conveniente e moralmente correta.
Dores e delícias
Já podemos imaginar que, sendo a não monogamia um pacto contra praticamente tudo que aprendemos sobre relações, algumas dificuldades aparecem para as pessoas que se dizem não monogâmicas.
Da decisão de viver a não monogamia para efetivamente colocá-la em prática, é necessário ter muita paciência e contar com ajuda para não se atropelar no caminho, entender melhor os próprios desejos e viver de forma saudável.
Os ciúmes despontam como principal reclamação entre não monogâmicos. A dificuldade de romper com o ensino de que ciúme é prova de amor não é pouca. Entender que o desejo de uma parceria afetiva por outra pessoa não significa que ela irá te substituir pode ser difícil, mas ao mesmo tempo é libertador.
De repente, a pessoa não está com você por você ser “a melhor pessoa do mundo”, mas porque você é você. Isso é a única informação que importa e é o que move a continuidade daquela relação.
Tratar as inseguranças que surgem sem o devido apoio profissional terapêutico é uma tarefa ingrata. Se pudermos acessar esses serviços, devemos usá-los tanto quanto for possível.
Outra mudança significativa de conceito, que costuma gerar alguma angústia, é a dificuldade em nomear as relações que são estabelecidas. Se o sexo não é definidor de prioridade, se a hierarquia monogâmicas das relações é danosa, o que são essas pessoas que amo e que estão na minha vida? Como as chamarei? São todas minhas amigas, são todas meus amores?
Essa dificuldade pode se transformar em deliciosos momentos em que simplesmente curtimos o prazer da companhia alheia e estabelecemos confiança e parcerias duradouras com as pessoas que quisermos.
Dependendo do tipo de relação estabelecida, algumas novas dificuldades se apresentarão. O principal da não monogamia, a meu ver, está justamente em ser um “não modelo”. Dessa forma, muitas situações geram sofrimentos e prazeres inéditos.
Retomando o terreno afetivo
Como afirma a pesquisadora Geni Núñez (@genipapos), a monogamia nunca nos perguntou se a aceitávamos. Ela “chegou chegando”, impôs suas regras, passou por cima das nossas individualidades, diferenças e, apesar de ter sido profundamente modificada desde sua invenção nos últimos cinco mil anos, mantém sua propaganda ativa: você só pode ser feliz se for monogâmico.
“Uma ova!”, responde a não monogamia, tentando descobrir como viver essas novas possibilidades afetivas em um mundo ainda muito hostil aos seus ideais de relação.
Essa tentativa funciona como uma espécie de retomada de ideias pré-monogâmicas sobre amores e vínculos afetivos, com o desafio de aplicá-las em uma sociedade complexa e sedenta por respostas sobre como ter relações saudáveis, gostosas e que valham a pena de serem vividas.