Você gostaria de se envolver espontaneamente com as pessoas, sem colocar o sexo como centro das suas relações ou o casamento como um norte, deixando que cada pessoa ocupe naturalmente um espaço na sua vida e tenha também sua autonomia de ter outros vínculos independentemente dos rótulos tradicionais?
Se a resposta for sim, talvez a anarquia relacional seja uma opção de vida para você.
Nos novos formatos de relação que surgem, a não monogamia desponta como uma possibilidade diante da desilusão ou do descontentamento das pessoas com a monogamia. Mas não se engane: não existe um único formato não monogâmico, justamente porque a não monogamia se coloca como um “não modelo” – ela é algo que precisa ser discutido, testado e provado pelas pessoas que decidem por ela.
Poligamia é não monogamia?
Dentre os vários tipos de não monogamias que surgem, costuma haver uma confusão não intencional de se considerar a poligamia como um modelo contrário à monogamia, diferente dela e que, portanto, se colocaria como um dos jeitos não monogâmicos de se relacionar.
Quando diferenciamos a não monogamia da poligamia, já deixamos nítido que a principal marca não monogâmica não é a quantidade de parceiros românticos ou afetivo-sexuais. É comum esse pré-julgamento, visto que a monogamia é fundamental marcada pela exclusividade no amar e no transar.
Não só isso, mas o discurso monogâmico, segundo o falecido psicanalista e professor Welson Barbato, afirma que “o objeto que satisfaz nosso desejo existe”, já que a pessoa amada é responsável por suprir todas as minhas demandas afetivas, sexuais e até materiais.
Tal pensamento, de acordo com Regina Navarro Lins, psicanalista e especialista em relações amorosas, foi incorporado pela monogamia: é o amor romântico, responsável por promessas infundadas, descabidas, mas, ainda assim, incrivelmente divulgado e endossado.
Logo, se a monogamia se baseia em estar apenas com uma pessoa (de cada vez), ao olharmos rapidamente para um modelo relacional que permita a multiplicidade de pares amorosos, podemos cometer o equívoco de nomeá-lo de não monogamia.
Um olhar mais cuidadoso para os formatos poligâmicos nos permite destacar seu caráter patriarcal, em que apenas homens possuem esse direito; as mulheres, por sua vez, estão vinculadas a apenas um homem, seu marido, a quem devem obediência.
Além disso, na poligamia o par romântico da mulher possui centralidade e prioridade em sua vida, o que faz com que amizades e demais relações estejam em segundo plano – quando existem.
E por que isso não pode ser considerado não monogamia? Primeiramente, pelo machismo de permitir apenas ao homem a pluralidade afetiva; posteriormente, por manter intacta a hierarquia das relações, condição primeira, fundamental e mais importante da monogamia, segundo Brigitte Vasallo em seu livro O Desafio Poliamoroso.
Podemos concluir – e isso nos ajudará a conceituar a anarquia relacional – que a não monogamia é, principalmente, uma quebra das hierarquias que pré-definem a importância das pessoas na nossa vida, de acordo com o nome que essas relações recebem, e também um fenômeno inevitavelmente feminista.
Algumas não monogamias
Impensável dez anos atrás, hoje em dia possuímos alguma variedade de definições dentro da não monogamia, que permite a cada pessoa que se entende não monogâmica escolher um dos “não modelos” que existem.
Duas das configurações mais comuns são a relação aberta e o poliamor.
Se um casal quer manter a centralidade de sua relação e do seu amor intacta, geralmente há a opção pela relação aberta, na qual é permitido apenas o envolvimento sexual com terceiros, sem maiores aprofundamentos emocionais.
É comum, em algum momento dessa relação, que haja muita frustração, justamente porque os limites emocionais não se sustentam: alguém se apaixona, conta ao outro e começam as inúmeras discussões sobre os acordos quebrados – e corações machucados.
Já o poliamor, funcionando como antítese da relação aberta, permite e incentiva parcerias amorosas profundas, duradouras, estáveis no tempo. Foi, por muito tempo, uma estratégia não monogâmica de se popularizar, buscando a compreensão das pessoas monogâmicas de que, afinal, o que importa é o amor.
Os formatos poliamoros são tão numerosos quanto a imaginação permite. Desde os trisais até as relações em W, passando pelo quadrado, as pessoas possuem plena liberdade de se relacionar afetivo-sexualmente com uma ou vinte pessoas, desde que todas estejam cientes.
Anarquia relacional
Entendendo a não monogamia essencialmente como um movimento político, a anarquia relacional leva até as últimas consequências as afirmações não monogâmicas de se relacionar.
Aqui tudo é questionado: limites e acordos, a entidade casal e todas as classificações tradicionais que as relações recebem.
Escalada relacional
Entendida como uma forma monogâmica de encarar as relações, a escalada relacional diz respeito às expectativas que depositamos em um par amoroso no que diz respeito a o que será daquela relação.
Nesse sentido, não haveria possibilidades ou configurações aceitas quando amamos alguém, porque o único sentido possível que esse vínculo pode seguir seria namoro-noivado-casamento-filhos.
A anarquia relacional rejeita prontamente essa obrigatoriedade de associar amor ao script relacional da monogamia.
Uma das principais formas de não aceitar a escalada relacional como algo correto ou saudável é a tentativa de retirar o sexo do centro das relações. Dessa forma, o que consideramos amizade não seria menos importante do que alguém com quem compartilhamos experiências sexuais duas vezes na semana, por exemplo.
Desnecessário dizer que, ao negar a escalada relacional, a entidade casal se torna um dos principais alvos de crítica da anarquia relacional, já que o par romântico desejado por todas as pessoas deixa de ser um objetivo de vida.
Limites e regras
Existem relações sem regras? Os anarquistas relacionais acreditam que sim. Para isso, conceituam limites e regras de forma diferente.
O limite seria algo profundamente pessoal, que apenas o próprio indivíduo conhece e sabe que não deve ser ultrapassado, sob risco de prejudicar a própria saúde mental.
A regra seria usar desse limite para impor um comportamento a alguém. Dito de outra forma, quando utilizamos um limite nosso, pessoal, para dizer como outra pessoa deve se comportar diante desse limite, criamos uma regra, algo imposto e que a outra pessoa deve obedecer.
A anarquia relacional tem verdadeira repulsa por regras, por considerá-las uma forma de controle monogâmica sobre alguém.
Qual o problema que surge dessas definições aparentemente bem-intencionadas? É que, se nos importamos com alguém, às vezes não desfrutamos de toda nossa autonomia na busca pelos nossos desejos e damos passos atrás.
Por outro lado, alguém pode demandar, em situações de extrema vulnerabilidade emocional, comportamentos de alguém, para que o sofrimento acabe imediatamente.
Como se vê, boas definições não resolvem a complexidade humana que é se relacionar.
Alguns, para resolver os óbvios problemas que surgem dessa dinâmica limite-regra, preferem utilizar o termo “acordo” para se referirem a combinados, sempre temporários e sujeitos à revisão, que podem ser feitos entre as pessoas interessadas em determinada relação, para que ambos estejam confortáveis diante de um impasse.
Mesmo assim, existem anarquistas relacionais que rejeitam completamente a ideia de acordos, considerando-os também uma forma de controle.
Dificuldades de implementação da anarquia relacional
Não é preciso pensar muito para entender que a anarquia relacional deseja uma completa ruptura com o mundo tal qual ele se organiza hoje.
Isso, por si só, gera conflitos e contradições práticas entre o que se deseja e o que é possível de fazer em uma sociedade organizada de forma totalmente hierárquica e que legitima apenas uma forma de família (monogâmica).
Mas não só a imposição material de como a vida funciona afeta os anarquistas relacionais: as questões de gênero, por exemplo, que atravessam também todas as pessoas que vivem a não monogamia, continuam existindo e gerando desigualdades enormes.
Até que ponto a anarquia relacional, na sua tentativa de retirar etiquetas e criar relações mais horizontais, não poderia manter ou colocar em ainda mais vulnerabilidade as mulheres, que já são massacradas na monogamia de diversas formas?
Se pensarmos em outras características que podem atravessas um sujeito, como a cor de sua pele ou alguma deficiência, de que forma a anarquia relacional responde os anseios dessas pessoas por relações saudáveis?
Criando os “não modelos”
Se afirmamos que a não monogamia é um “não modelo”, quem define o formato da anarquia relacional, que teoricamente seria a maior ausência de modelo não monogâmico?
O desafio maior para anarquistas relacionais talvez seja demonstrar que não há ausência de responsabilidade sobre as pessoas quando rejeitamos as atuais denominações que as relações recebem e que é possível construir outros mundos, afetivamente saudáveis.
Sem dúvidas é uma tarefa enorme a criação de espaços que de fato questionem as atuais formas de relação, que subvertam as classificações tradicionais e que provem que anarquistas dispensam etiquetas e constroem comunidades.